2004/02/20
Ás voltas com uma tal de modernidade
John Coltrane - Ascension
Já há algum tempo que este CD embeleza a minha coleção e no entanto sempre tive receio de escrever sobre ele. Esse receio deve-se ao facto de ser ao mesmo tempo uma obra de peso no edíficio do Jazz e de ser também um ovni díficil de escrever/descrever. Com a deixa que a Sofia deixou, era agora ou nunca. Porém, como as minhas qualificações como crítico de Jazz são incipientes, só posso comentar e dar a descobrir este disco apoiado nas muletas que são o All Music Guide e o Penguin Guide to Jazz on CD.
Que Coltrane é um dos maiores nomes do Jazz, não há qualquer dúvida. Apesar de ter tido uma carreira curta, Coltrane percorreu desde standards fáceis de ouvir a coisas muito radicais e free, que exigem considerável esforço da parte do ouvinte. Pelo meio deixou-nos uma obra prima incontestada, A Love Supreme, que consegue um equílibrio notável entre vanguardismo e apelo imediato.
Segundo o Penguin, provavelmente 10 vezes mais pessoas possuem uma cópia de A Love Supreme do que sequer conhecem Ascension. Tal pode dever-se ao que vem referido nas notas originais do disco: "este não é um disco que possa ser amado ou precebido à primeira audição nem pode ser apreciado com a audição de um excerto durante 2 minutos numa qualquer loja de discos".
A minha experiência particular com o disco será talvez sintomática do que acontece com muito boa gente: adorava A Love Supreme, e uma vez que este merece o "Coveted Crown Award" do Penguin, fiquei imediatamente seduzido pela ideia de comprar o Ascension quando vi que também ele merecia a pequena coroa e os elogios de "Obra Prima". Mal sabia no que me estava a meter...
Antes da minha experiência pessoal, convém explicar um pouco do que trata este Ascension. Coltrane grava aqui com um duplo quarteto que, como é característico dos bons discos de jazz dos anos 60, é um verdadeiro "Who's who": Freddie Hubbard, Pharaoah Sanders, McCoy Tyner, Archie Shepp, entre outros "nomes sonantes". O motivo inicial é o mesmo de "Acknowledgement", de A Love Supreme, e à volta deste os músicos experimentam de forma muito livre. O todo sonoro parece totalmente quebrado e dissonante, porém se por vezes o som é abrasivo, a maior parte dos segmentos acaba por resultar bastante bem quando considerado apenas em si próprio. Há por isso que dar um passo atrás e e tentar abraçar o todo, ainda que isso seja difícil. Mas está lá um lado soul, uma espiritualidade que também existe em A Love Supreme e que aqui é levada mais longe: nesta música encontra-se sofrimento e redenção.
Há que ter em conta que este é um disco relativamente díficil de encontrar à venda em Lisboa. Como não o encontrava nas Fnac, VC ou Worten, acabei por o encomendar pela Amazon. Claro que isto fez com que o disco demorasse bastante tempo a chegar e assim a expectativa era cada vez maior. Quando o disco chegou, fui a correr pô-lo a tocar. Mas a primeira (e segunda, e terceira) reacção foi "mas qu' é isto? Quem largou os putos do jardim escola à solta no estúdio?". Infelizmente é assim, o disco é demasiado denso e des-estruturado melódica e ritmicamente para que se oiça com facilidade desde o primeiro momento, e penso que muita gente desiste às primeiras audições...
Também eu desisti às primeiras audições, mas felizmente não em definitivo. Depois de alguns meses passados a acumular pó na prateleira, uma bela noita (circa 2 da manhã) decidi pô-lo a tocar, e tive a tal epifania (não, não se trata da festa dos reis, estou a traduzir literalmente do inglês... em português falta uma palavra que assente ao acontecimento. Talvez visão, ou iluminação...). De um momento para o outro tudo aquilo parecia fazer sentido, ouvir o disco era um equivalente musical a um quadro de pollock, uma mistura de ordem e desordem que estranhamente resultava, estava a ouvir pequenas explosões aleatórias de cor a sairem da minha aparelhagem... Fiquei mais descansado. Afinal o disco era bom, e podia dizer que ele era bom sem ter que reprimir uma sensação inquietante de não querer reconheçer que o rei ia nu (embora, ao relatar o episódio, houvesse que me aconselhasse a largar os cogumelos...).
Ascension não é certamente um disco para todos os momentos, nem para todos os locais ou estados de alma. Por exemplo é uma coisa que não se consegue ouvir passivamente no escritório enquanto se trabalha, e também não resulta no rádio do carro (a não ser para cometer suicídio em contra-mão). Se calhar não é também um disco para toda a gente, nem todos estarão disponíveis para o apreciar. Mas é de facto uma obra prima do Jazz (do Free em particular mas também do Jazz geral), que merecia ser pelo menos mais reconhecida e falada...
Já há algum tempo que este CD embeleza a minha coleção e no entanto sempre tive receio de escrever sobre ele. Esse receio deve-se ao facto de ser ao mesmo tempo uma obra de peso no edíficio do Jazz e de ser também um ovni díficil de escrever/descrever. Com a deixa que a Sofia deixou, era agora ou nunca. Porém, como as minhas qualificações como crítico de Jazz são incipientes, só posso comentar e dar a descobrir este disco apoiado nas muletas que são o All Music Guide e o Penguin Guide to Jazz on CD.
Que Coltrane é um dos maiores nomes do Jazz, não há qualquer dúvida. Apesar de ter tido uma carreira curta, Coltrane percorreu desde standards fáceis de ouvir a coisas muito radicais e free, que exigem considerável esforço da parte do ouvinte. Pelo meio deixou-nos uma obra prima incontestada, A Love Supreme, que consegue um equílibrio notável entre vanguardismo e apelo imediato.
Segundo o Penguin, provavelmente 10 vezes mais pessoas possuem uma cópia de A Love Supreme do que sequer conhecem Ascension. Tal pode dever-se ao que vem referido nas notas originais do disco: "este não é um disco que possa ser amado ou precebido à primeira audição nem pode ser apreciado com a audição de um excerto durante 2 minutos numa qualquer loja de discos".
A minha experiência particular com o disco será talvez sintomática do que acontece com muito boa gente: adorava A Love Supreme, e uma vez que este merece o "Coveted Crown Award" do Penguin, fiquei imediatamente seduzido pela ideia de comprar o Ascension quando vi que também ele merecia a pequena coroa e os elogios de "Obra Prima". Mal sabia no que me estava a meter...
Antes da minha experiência pessoal, convém explicar um pouco do que trata este Ascension. Coltrane grava aqui com um duplo quarteto que, como é característico dos bons discos de jazz dos anos 60, é um verdadeiro "Who's who": Freddie Hubbard, Pharaoah Sanders, McCoy Tyner, Archie Shepp, entre outros "nomes sonantes". O motivo inicial é o mesmo de "Acknowledgement", de A Love Supreme, e à volta deste os músicos experimentam de forma muito livre. O todo sonoro parece totalmente quebrado e dissonante, porém se por vezes o som é abrasivo, a maior parte dos segmentos acaba por resultar bastante bem quando considerado apenas em si próprio. Há por isso que dar um passo atrás e e tentar abraçar o todo, ainda que isso seja difícil. Mas está lá um lado soul, uma espiritualidade que também existe em A Love Supreme e que aqui é levada mais longe: nesta música encontra-se sofrimento e redenção.
Há que ter em conta que este é um disco relativamente díficil de encontrar à venda em Lisboa. Como não o encontrava nas Fnac, VC ou Worten, acabei por o encomendar pela Amazon. Claro que isto fez com que o disco demorasse bastante tempo a chegar e assim a expectativa era cada vez maior. Quando o disco chegou, fui a correr pô-lo a tocar. Mas a primeira (e segunda, e terceira) reacção foi "mas qu' é isto? Quem largou os putos do jardim escola à solta no estúdio?". Infelizmente é assim, o disco é demasiado denso e des-estruturado melódica e ritmicamente para que se oiça com facilidade desde o primeiro momento, e penso que muita gente desiste às primeiras audições...
Também eu desisti às primeiras audições, mas felizmente não em definitivo. Depois de alguns meses passados a acumular pó na prateleira, uma bela noita (circa 2 da manhã) decidi pô-lo a tocar, e tive a tal epifania (não, não se trata da festa dos reis, estou a traduzir literalmente do inglês... em português falta uma palavra que assente ao acontecimento. Talvez visão, ou iluminação...). De um momento para o outro tudo aquilo parecia fazer sentido, ouvir o disco era um equivalente musical a um quadro de pollock, uma mistura de ordem e desordem que estranhamente resultava, estava a ouvir pequenas explosões aleatórias de cor a sairem da minha aparelhagem... Fiquei mais descansado. Afinal o disco era bom, e podia dizer que ele era bom sem ter que reprimir uma sensação inquietante de não querer reconheçer que o rei ia nu (embora, ao relatar o episódio, houvesse que me aconselhasse a largar os cogumelos...).
Ascension não é certamente um disco para todos os momentos, nem para todos os locais ou estados de alma. Por exemplo é uma coisa que não se consegue ouvir passivamente no escritório enquanto se trabalha, e também não resulta no rádio do carro (a não ser para cometer suicídio em contra-mão). Se calhar não é também um disco para toda a gente, nem todos estarão disponíveis para o apreciar. Mas é de facto uma obra prima do Jazz (do Free em particular mas também do Jazz geral), que merecia ser pelo menos mais reconhecida e falada...